Houve um varão na terra de Us cujo nome era Jó. E era este varão sincero e reto, e temente a Deus, e desviando-se do mal.
E nasceram-lhe sete filhos, e três filhas.
E era seu gado sete mil ovelhas, e três mil camelos, e quinhentas juntas de bois, e quinhentas asnas; era também muitíssima a gente de seu serviço. De maneira que era este varão maior que todos os do oriente.
E iam seus filhos, e faziam banquetes na casa de cada um em seu dia; e enviavam, e convidavam a suas três irmãs, a comerem e beberem com eles.
Era pois que, acabando-se em roda os dias dos banquetes, enviava Jó e santificava-os; e levantava-se de madrugada, e oferecia holocaustos segundo o número de todos eles, porque dizia Jó: Porventura pecaram meus filhos, e renunciaram a Deus em seu coração. Assim fazia Jó todos aqueles dias.
E vindo um dia em que os filhos de Deus vieram a apresentar-se perante o Senhor, também Satanás veio entre eles.
Então o Senhor disse a Satanás: Donde vens? E Satanás respondeu ao Senhor, e disse: De rodear a terra, e passear por ela.
E disse o Senhor a Satanás: Atentaste também para meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, varão sincero e reto, temente a Deus, e desviando-se do mal.
Então respondeu Satanás ao Senhor, e disse: Porventura teme Jó a Deus debalde?
Porventura de valado o não cercaste a ele, e a sua casa, e a tudo quanto tem? A obra de suas mãos abençoaste, e seu gado em multidão transbordou sobre a terra.
Mas, porém, estende tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem; e verás se te não renuncia em tua face!
E disse o Senhor a Satanás: Eis que tudo quanto tem, está em tua mão; somente a ele não estendas tua mão. E Satanás se saiu de diante do acatamento do Senhor.
E sucedeu um dia, em que seus filhos e suas filhas comiam, e bebiam vinho, na casa de seu irmão, o primogênito,
Que um mensageiro veio a Jó, e lhe disse: Estando os bois lavrando, e as asnas pastando a seus lados;
Eis que os sabeus deram sobre eles, e os tomaram, e aos moços feriram a fio de espada. E tão somente eu só escapei, para trazer-te as novas.
Estando este ainda falando, veio outro e disse: Fogo de Deus caiu do céu, e acendeu-se entre as ovelhas e entre os moços, e consumiu-os. E tão somente eu só escapei, para trazer-te as novas.
Estando este ainda falando, veio outro e disse: Ordenando os caldeus três tropas, deram sobre os camelos, e tomaram-nos, e aos moços feriram a fio de espada. E tão somente eu só escapei, para trazer-te as novas.
Estando este ainda falando, veio outro e disse: Estando teus filhos e tuas filhas comendo, e bebendo vinho, na casa de seu irmão, o primogênito;
Eis que um grande vento sobreveio dalém do deserto, e deu nos quatro cantos da casa, e caiu sobre os mancebos, e morreram. E tão somente eu só escapei, para trazer-te as novas.
Então Jó se levantou, e rasgou sua capa, e tosquiou sua cabeça; e lançou-se em terra, e adorou.
E disse: Nu saí do ventre de minha mãe, e nu tornarei para lá; o Senhor o deu, e o Senhor o tomou. Bendito seja o nome do Senhor!
Em tudo isto, Jó não pecou; e a Deus não atribuiu falta alguma.
Capítulo 2
E vindo outro dia em que os filhos de Deus vieram a apresentar-se perante o Senhor, também Satanás veio entre eles a apresentar-se perante o Senhor.
Então o Senhor disse a Satanás: Donde vens? E respondeu Satanás ao Senhor, e disse: De rodear a terra, e passear por ela.
E disse o Senhor a Satanás: Atentaste também para meu servo Jó? Porque ninguém há na terra semelhante a ele, varão sincero e reto, temente a Deus, e desviando-se do mal. E que ainda retém sua sinceridade, havendo-me tu incitado contra ele, para lançá-lo a perder sem causa.
Então Satanás respondeu ao Senhor, e disse: Pele por pele, e tudo quanto o homem tem, dará por sua vida.
Porém estende tua mão, e toca-lhe em seus ossos, e em sua carne; e verás se te não renuncia em tua face!
E disse o Senhor a Satanás: Eis que está em tua mão. Porém guarda sua vida.
Então se saiu Satanás de diante do acatamento do Senhor; e feriu a Jó de ruins carbúnculos, desde a planta de seu pé até a moleira de sua cabeça.
E tomou um pedaço de telha, para coçar-se com ela; e estava assentado em meio da cinza.
Então sua mulher lhe disse: Ainda reténs tua sinceridade? Renuncia a Deus, e morre!
Porém ele lhe disse: Como fala qualquer das doidas, falas tu; de modo que receberíamos o bem de Deus, e o mal não receberíamos? Em tudo isto, não pecou Jó com seus lábios.
Ouvindo, pois, três amigos de Jó todo este mal que viera sobre ele, vieram cada qual de sua lugar: Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita. E acertaram juntamente de virem a condoer-se dele, e a consolá-lo
E levantando seus olhos de longe, não o reconheceram; e levantaram sua voz, e choraram. E, cada qual deles, rasgaram suas capas, e espargiram pó sobre suas cabeças para o céu.
Assim se assentaram juntamente com ele sobre a terra, sete dias e sete noites. E nenhum lhe falava palavra alguma, porque viam que a dor era mui grande.
Capítulo 3
Depois disto, abriu Jó sua boca, e amaldiçoou seu dia.
Porque Jó respondeu, e disse:
Pereça o dia em que nasci; e a noite em que se disse: Macho foi concebido!
Quem dera aquele dia fosse trevas; e Deus, desde cima, não tivesse cuidado dele, nem resplendor o esclarecesse!
Trevas e sombra de morte o contaminassem, nuvens habitassem sobre ele; os negros vapores do dia o espantassem!
Escuridão tomasse aquela noite, e não se gozasse entre os dias do ano; e não viesse no número dos meses!
Ah, se aquela noite fosse solitária; e suave música não viesse a ela!
Os amaldiçoadores do dia a amaldiçoassem, os quais se preparam para despertar o Leviatã!
As estrelas do seu lusco-fusco se escurecessem; esperasse a luz, e não viesse; e não visse as pestanas dos olhos da alva!
Porquanto não fechou as portas de meu ventre; nem de meus olhos escondeu a canseira.
Por que não morri desde a madre? E em saindo do ventre, não expirei?
Por que se me anteciparam os joelhos? E para que os peitos, que mamasse?
Porque já agora teria jazido e repousado; dormiria, e já haveria repouso para mim:
Com os reis e conselheiros da terra, que se edificam casas nos lugares assolados;
Ou com os príncipes que tinham ouro, que suas casas enchiam de prata;
Ou como aborto oculto, não houvesse sido; como as crianças que não viram a luz.
Ali os maus cessam de perturbar; e ali descansam os de cansadas forças.
Ali os presos juntamente repousam; e não ouvem a voz do exator.
Ali o pequeno, e o grande, está em repouso; e o servo está livre de seu senhor.
Porque dá ao miserável luz? E vida aos amargos de ânimo?
Que esperam a morte, e não se acha; e em busca dela mais cavam que em busca de tesouros ocultos;
Que de alegria saltam, e se regozijam achando a sepultura.
Por que dá luz ao varão cujo caminho é oculto, e a quem Deus o encobriu?
Porque antes de meu pão, me vem meu suspiro; e meus bramidos se derramam como água.
Porque temi temor, e veio-me; e o que receava, me sobreveio.
Nunca estive descansado, nem sosseguei, nem repousei, e veio-me perturbação.
Capítulo 4
Então respondeu Elifaz, o temanita, e disse:
Se intentarmos falar-te, enfadar-te-ás? Mas quem poderia deter as palavras?
Eis que ensinaste a muitos; e as mãos fracas, fortaleceste.
Tuas palavras levantaram aos tropeçantes; e aos joelhos desfalecentes, fortificaste.
Mas agora, por aquilo que a ti te vem, te enfadas; e tocando-te, te perturbas.
Porventura, não era teu temor de Deus tua esperança? E a sinceridade de teus caminhos, tua atença?
Lembra-te agora, qual é o inocente que perecesse? E onde os sinceros foram destruídos?
Mas como eu já tenho visto, os que lavram iniquidade, e semeiam trabalho, isso mesmo segam.
Com o bafejo de Deus, perecem; e com o sopro de suas narinas, se consomem.
O bramido do leão, e a voz do feroz leão; e os dentes dos filhos do leão, se quebrantam.
Perece o leão forte, porquanto não há presa; e os filhos da leoa se espalham.
Demais disto, uma palavra se me disse em segredo; e meus ouvidos alcançaram um sonido dela.
Entre imaginações de visões noturnas; quando o sono profundo cai sobre os homens;
Espanto, e tremor me sobreveio; que todos os ossos me espantou.
Então um espírito passou por diante de mim; arrepiou-se o cabelo de minha carne.
Parou ele, porém não reconheci sua feição; uma figura se pôs diante de meus olhos. E calando, ouvi uma voz que dizia:
Seria porventura o homem mais justo que Deus? Seria porventura o varão mais puro que seu Fazedor?
Eis que em seus servos não confiaria; e em seus anjos, poria culpa de loucura.
Quanto menos naqueles que habitam em casas de lodo cujo fundamento está no pó; e se quebrantam com a traça!
Desde a manhã até a tarde, são despedaçados; e sem que nisso se atente, eternamente perecem.
Porventura se não vai sua excelência, que estava neles? Morrem, porém não com sabedoria.
Capítulo 5
Clama, pois, a ver se alguém há que te responda; e a qual dos santos te tornarás.
Porque ao louco, acaba a mágoa; e ao tolo, mata o zelo.
Bem vi eu ao louco arraigar-se; porém logo amaldiçoei sua habitação.
Seus filhos estavam longe da salvação; e foram oprimidos às portas, e não houve quem os livrasse.
Sua sega, devorou-a o faminto, e até dentre os espinhos a tirou; e o salteador tragou sua fazenda.
Porque do pó não procede a iniquidade, nem da terra brota o trabalho.
Mas o homem nasce para o trabalho, como as setas atiradas se levantam a voar.
Porém eu, eu buscaria a Deus; e a ele endereçaria minha fala.
Pois faz tão grandiosas coisas, que se não podem esquadrinhar; e tantas maravilhas, que se não podem contar.
Que dá a chuva sobre a terra, e envia águas sobre os campos.
Para pôr aos abatidos em altura; para que os enlutados se exaltem pela salvação.
Aniquila as imaginações dos astutos, para que suas mãos nada efetuem na realidade.
Prende aos sábios em sua astúcia, para que o conselho dos perversos seja derribado.
De dia, encontram com as trevas; e como se fosse de noite, andam às apalpadelas ao meio-dia.
Porém ao necessitado livra da espada, e da boca deles; e das mãos do poderoso.
Assim, há atença para o pobre; mas a iniquidade tapa a boca deles.
Eis que bem-aventurado é o homem a quem Deus castiga; pelo que o castigo do Todo-Poderoso, não rejeites.
Porque ele faz a chaga, e ele mesmo a liga; ele fere, e suas mãos curam.
Em seis angústias, te livrará; e na sétima, o mal te não tocará.
Na fome, te remirá da morte; e na guerra da violência, da espada.
Do açoite da língua, estarás encoberto; e não temerás a assolação, quando vier.
Da assolação e da fome te rirás; e aos animais da terra, não temerás.
Porque até com as pedras do campo terás tua aliança; e os animais do campo serão pacíficos contigo.
E acharás que tua tenda está em paz; e proverás tua habitação, e assim não falharás.
Também acharás que se multiplicará tua semente; e teus gomos, como a erva da terra.
Já na velhice, irás à sepultura: como o montão de trigo se recolhe a seu tempo.
Eis que isto, já o havemos inquirido, e assim é. Ouve-o, e atenta nisso, por teu bem.
Capítulo 6
Mas Jó respondeu, e disse:
Oh, se minha mágoa retamente se pesasse! E minha miséria juntamente se alçasse numa balança!
Porque, na verdade, mais pesada seria que a areia dos mares; pelo que minhas palavras se me afogam.
Porque as flechas do Todo-Poderoso estão em mim, cujo ardente veneno bebe meu espírito: os terrores de Deus se armam contra mim.
Porventura, zurrará o asno montês junto à relva? Ou berrará o boi junto a seu pasto?
Ou comer-se-á o desenxabido sem sal? Ou haverá gosto na clara do ovo?
Minha alma recusa de tocar a vossas palavras; pois são como minha comida insossa.
Oh, se meu desejo se cumprisse! E Deus me desse o que espero!
E que Deus quisesse quebrantar-me! E sua mão soltasse, e me acabasse!
Isto ainda seria minha consolação, e refrigerar-me-ia em meu tormento, não me perdoando ele; porque não ocultei as palavras do Santo.
Que é minha força, para que espere? Ou qual é meu fim, para que prolongue minha vida?
É porventura minha força, força de pedra? Ou é minha carne de metal?
Ou não está minha ajuda em mim? Ou recolheu-se de mim a real sapiência?
Ao que se está derretendo, havia de fazer bem o amigo; porém este deixa ao temor do Todo-Poderoso.
Meus irmãos aleivosamente me falharam, como ribeiro: recolhem-se como o transbordar dos ribeiros;
Que estão encobertos com a geada; e neles se esconde a neve.
No tempo em que se derretem com o calor, se desfazem; e em aquentando-se, desaparecem do seu lugar.
As veredas de seus caminhos se desviam a uma e outra banda: sobem pelo lugar vazio, e perecem.
Assim olharam para as veredas de Temá; atentaram bem para as passagens de Sabá.
Foram envergonhados, por confiar cada qual neles; e chegando ali, se confundem.
Agora pois, na verdade, para comigo vos desfizestes em nada. Vistes meu espanto, e temestes.
Porventura, disse-vos eu: Trazei-me? E de vossa fazenda, me dai presentes?
Ou livrai-me das mãos do opressor? E redimi-me das mãos dos tiranos?
Ensinai-me, e eu me calarei; e dai-me a entender em que errei.
Que enfado dão as palavras da boa razão? Mas o que ousa repreender alguém de vós outros?
Porventura, cogitareis palavras para repreender? E as razões do desesperado, lançareis ao vento?
Assim vos lançais sobre o órfão; e cavais cova ao vosso amigo.
Agora, pois, se sois servidos, virai-vos para mim; e ver-se-á em vossa presença se minto.
Tornai-vos, pois; não haja iniquidade. Tornai, digo, a argumentar, que ainda minha justiça aparecerá nisso.
Haveria iniquidade em minha língua? Ou não poderia meu paladar dar a entender minhas misérias?
Capítulo 7
Porventura não tem o homem combate sobre a terra? E não são seus dias como os dias do jornaleiro?
Como o servo suspira pela sombra, e como o jornaleiro espera por seu salário,
Assim me deram por herança meses de vaidade; e noites de trabalho me prepararam.
Deitando-me a dormir, então digo: Quando me levantarei? E ele medirá a noite? E farto-me de voltear na cama até a alva.
Minha carne está revestida de bichos, e de torrões de pó; meu couro está fendido, e feito abominável.
Meus dias são mais ligeiros que a lançadeira do tecelão; e pereceram sem esperança.
Lembra-te que minha vida é vento; e que meus olhos não tornarão a ver o bem.
Os olhos dos que agora me vêem, não mais me verão; teus olhos estarão sobre mim, porém não mais serei.
A nuvem se esvaece, e passa; assim o que desce à sepultura, nunca mais tornará a subir.
Nunca mais tornará à sua casa, nem seu lugar mais o conhecerá.
Pelo que também eu não reterei minha boca; antes, falarei com angústia de meu espírito, e queixar-me-ei com amargura de minha alma.
Sou eu, porventura, o mar, ou dragão marinho; para que me ponhas guarda?
Dizendo eu: Minha carne me consolará; meu leito tirará alguma coisa de minhas queixas;
Então me espantas com sonhos, e com visões me assombras.
Pelo que, antes, minha alma escolheria a afogadura; e mais a morte, que meus ossos.
Já eu os abomino, pois eternamente não viverei. Retira-te de mim, pois meus dias são vaidade.
Que é o homem, para que tanto o estimes? E ponhas sobre ele o teu coração?
E a cada manhã o visites, e a cada momento o proves?
Até quando me não deixarás? Nem me soltarás, até que engula meu cuspe?
Pequei eu; que te farei, ó guarda dos homens? Por que me puseste por alvo, para que a mim mesmo me seja pesado?
E por que me não perdoas minha transgressão, e me não tiras minha iniquidade? Porque agora me deitarei no pó. E de madrugada me buscarás, e não mais serei.
Capítulo 8
Então respondeu Bildade, o suíta, e disse:
Até quando falarás tais coisas? E as razões de tua boca serão como vento impetuoso?
Porventura, perverteria Deus o direito? E perverteria o Todo-Poderoso a justiça?
Se teus filhos pecaram contra ele, também ele os lançou em poder de sua transgressão.
Mas se tu de madrugada buscares a Deus, e ao Todo-Poderoso pedires misericórdia;
Se fores puro e reto, certamente logo despertará por ti; e restaurará a morada de tua justiça.
Teu princípio, na verdade, será pequeno; porém teu último estado irá muito em crescimento.
Porque pergunta agora às gerações passadas; e prepara-te para a inquirição de seus pais.
Porque nós somos desde ontem, e nada sabemos; porquanto nossos dias são sobre a terra como a sombra.
Porventura, não te ensinarão os tais, e te falarão? E de seu coração, tirarão razões?
Porventura, sobe o junto sem lodo? Ou cresce a cana de lagoa sem água?
Porventura, estando ainda em sua verdura, ainda que a não cortem; todavia, antes de toda erva não se seca?
Assim são as veredas de todos quantos se esquecem de Deus; e a esperança do hipócrita perecerá.
Cuja esperança fica frustrada, e sua confiança será como a teia de aranha.
Encostar-se-á à sua casa, mas não se terá firme; apegar-se-á a ela, mas não ficará em pé.
Está suculento perante o sol; e seus renovos se saem por cima de sua horta.
Suas raízes se entrelaçam num montão de pedras: para o pedregal atenta.
Arrancando-se ele de seu lugar, nega-lo-á este, dizendo: Nunca te vi.
Eis que este é o prazer de seu caminho! E outros brotarão do pó.
Eis que Deus não rejeitará ao reto, nem toma pela mão aos malfeitores;
Até que de riso te encha a boca, e teus lábios de jubilação.
Teus aborrecedores se vestirão de confusão, e nunca mais haverá tenda de ímpios.
Capítulo 9
Mas Jó respondeu, e disse:
Na verdade sei que é assim; porque como se justificaria o homem para com Deus?
Se quiser contender com ele, nem a uma de mil coisas lhe poderá responder.
É sábio de coração, e forte de forças. Quem se endureceu contra ele, e esteve bem?
Ele é o que transporta as montanhas, sem que o sintam; e o que as transtorna em seu furor.
O que remove a terra de seu lugar, e suas colunas tremem.
O que manda ao Sol, e não sai; e às estrelas sela.
O que sozinho estende aos céus, e anda sobre as alturas do mar.
O que faz a Ursa, o Órion, e o Sete-Estrelo, e as recâmaras do sul.
O que faz tão grandes coisas, que não se podem esquadrinhar; e tantas maravilhas, que não se podem contar.
Eis que passará por diante de mim, e não o verei; e repassará perante mim, e não o sentirei.
Eis que arrebatará; quem lho fará restituir? Quem lhe dirá: Que fazes?
Deus não revogará sua ira: debaixo dele se encurvam os soberbos ajudadores.
Quanto menos lhe poderei eu responder? E minhas palavras, acomodar contra ele?
Ao qual, ainda que eu fosse justo, lhe não responderia. Antes, a meu juiz pediria misericórdia.
Ainda que chamara por ele, e ele me respondera; nem por isso creria que desse ouvidos à minha voz.
Porque me quebranta com tempestade; e multiplica minhas chagas sem causa.
Nem me concede respirar; antes, me farta de amarguras.
Quanto às forças, eis que ele é o forte; e quanto ao juízo, quem me citará com ele?
Se eu me justificar, minha boca me condenará; se for reto, então me declarará por perverso.
Se for reto, não estimo minha alma: desprezo minha vida.
Uma coisa resta, razão pela qual eu digo: ele consome ao reto, e ao ímpio.
Matando o açoite de improviso, então se ri da tentação dos inocentes.
A terra se entrega nas mãos do ímpio: ele cobre o rosto dos juízes. Pois se não ele, quem é, logo?
E meus dias foram mais ligeiros que o correio: fugiram, e nunca viram o bem.
Já passaram como navios de postagem; como a águia que se lança à comida.
Se eu disser: Esquecer-me-ei de minha queixa. E deixarei meus gestos, e refrigerar-me-ei.
Receio todas minhas dores; porque bem sei que não me terás por inocente.
E sendo eu ímpio, por que trabalharei em vão?
Ainda que me lave com água de neve, e purifique minhas mãos com sabão;
Então me submergirás na cova, e minhas vestes me abominarão.
Porque não é homem, como eu, a quem eu responda; vindo juntamente a juízo.
Não há entre nós árbitro, que ponha sua mão sobre nós ambos.
Retire de mim sua vara, e seu terror não me perturbe.
Então falarei, e não o temerei; porque assim como vós cuidais, não estou comigo.
Capítulo 10
Já minha alma está enfadada de minha vida; deixarei minha queixa sobre mim, e falarei com amargura de minha alma.
Direi a Deus: Não me condenes. Faze-me saber: por que comigo contendes?
Parece-te bem que me oprimas? Que rejeites o trabalho de tuas mãos!? E favoreças o conselho dos ímpios?
Tens tu, porventura, olhos carnais? Vês tu como o homem vê?
São teus dias como os dias do homem? Ou são teus anos como os anos do varão?
Para que inquiras minha iniquidade, e de meu pecado te informes?
Bem sabes tu que eu não sou ímpio; e todavia, ninguém há que me livre de tua mão.
Tuas mãos trabalharam em formar-me, e fizeram-me; ou melhor, tudo ao redor de mim, todavia me consomes.
Ora lembra-te que me preparaste como limo; e me farás tornar em pó.
Porventura, não me fundiste como leite? E como queijo, me não coalhaste?
De couro e carne me vestiste, e de olhos e nervos me cobriste.
Com a vida, beneficência me fizeste; e teu cuidado me guardou meu espírito.
Porém estas coisas ocultaste em teu coração: bem sei eu que isto esteve contigo.
Se eu pecar, tu atentarás por mim; e de minha iniquidade não me escusarás.
Se for ímpio, ai de mim; e sendo justo, não levantarei minha cabeça. Farto estou de afronta; mas atenta para minha miséria!
Porque esta se vai crescendo: como leão feroz, me andas a caças. Tornaste, e te pões a maravilhas contra mim.
Renovas tuas testemunhas em fronte de mim, e multiplicas tua ira contra mim: dão-se-me cada vez maiores combates.
Por que, pois, me tiraste da madre? Ah, se então houvesse dado o espírito, e olhos nenhuns me tivessem visto!
Então seria como se nunca houvesse sido; e desde o ventre, seria levado à sepulta.
Porventura, não são poucos meus dias? Cessa, pois! E deixa-me, para que me refrigere um pouco.
Antes que me vá, e nunca torne: à terra de escuridão, e de sombra de morte.
Terra escuríssima, como a própria escuridão, sombra de morte, e sem ordem alguma, que resplandece como a escuridão.
Capítulo 11
Então respondeu Zofar, o naamatita, e disse:
Porventura à multidão de palavras se não responderia? E o homem paroleiro teria razão?
Ou aos homens calariam tuas mentiras? E zombarias tu, e ninguém te envergonharia?
Pois disseste: Pura é minha doutrina; e limpo sou aos teus olhos.
Mas, na verdade, oxalá que Deus falasse; e abrisse seus lábios contra ti!
E te fizesse saber os segredos da sabedoria, porquanto são dúplices em essência; pelo que sabe que Deus se esquece de ti por tua iniquidade.
Porventura, alcançarás o rasto de Deus? Ou chegarás até a perfeição do Todo-Poderoso?
Como as alturas dos céus é sua sabedoria: que poderás tu fazer? Mais profunda que o inferno: que poderás tu saber?
Mais comprida é sua medida que a terra; e mais larga que o mar.
Se passar, e encerrar; ou se ajuntar, quem o desviará?
Porque ele conhece aos homens vãos. E vê ao vício; e não poria sentido?
Mas o varão desvanecido toma mais ânimo; porque nasce o homem como o burro, como o asno montês.
Ah, se tu preparasses teu coração! E estendesses tuas mãos a ele!
Se vício algum há em tua mão, lança-o longe de ti; e não deixes morar injustiça em tuas tendas.
Porque então teu rosto levantarás das máculas; e estarás firme, e não temerás.
Porque te esquecerás dos trabalhos; e te lembrarás deles como das águas que já passaram.
E até teu tempo, mais claro se levantará que o meio-dia; ainda que estejas coberto, serás como a manhãzinha.
E terás confiança, porque haverá esperança; e cavarás, e repousarás seguro.
E deitar-te-ás, e ninguém te espantará; e muitos suplicarão a teu rosto.
Porém os olhos dos ímpios se esmorecerão, e perecerá o refúgio deles; e sua atença será o expirar da alma.
Capítulo 12
Porém Jó respondeu, e disse:
Na verdade que, por só vós outros serdes o povo; por isso, convosco há de morrer sabedoria!
Também eu tenho um coração como vós outros, e não cedo a vós outros. E em quem não há semelhantes coisas?
Eu sou a risada de meus amigos, porém invoco a Deus, e ele me responde: o justo e o reto servem a risada.
Tocha desprezível é, na opinião do que está descansado: prestes está a tropeçar com os pés.
As tendas dos assoladores têm descanso, e os que a Deus irritam, seguranças; isto é, o que traz a Deus em sua mão.
E, na verdade, pergunta agora às bestas, e elas to ensinarão; e às aves dos céus, e elas to farão saber.
Ou fala com a terra, e ela to ensinará: até os peixes do mar to contarão.
Quem não entende por todas estas coisas, que a mão do Senhor faz isto?
Em cuja mão está a alma de tudo quanto vive, e o espírito de toda a carne humana.
Porventura o ouvido não provará as palavras, como o paladar degusta as comidas?
Nos já decrépitos está a sabedoria; e na longura de dias, o entendimento.
Quanto mais com ele está a sabedoria e a força! Seu é o conselho e o entendimento.
Eis que ele derriba, e não se reedificará; encerra ao homem, e não se lhe abrirá.
Eis que ele retém as águas, e secar-se-ão; e deixa-as sair, e transtornam a terra.
Com ele está a força e a real sapiência; seu é o errado, e o que o faz errar.
Aos conselheiros leva despojados, e aos juízes faz desvairar.
Solta a atadura dos reis, e ata o cinto a seus lombos.
Aos maiorais, leva despojados; e aos poderosos, transtorna.
Aos leais tira a fala, e o juízo toma aos velhos.
Derrama desprezo sobre os príncipes, e afrouxa o cinto dos violentos.
As profundezas das trevas manifesta, e a sombra da morte tira à luz.
Multiplica as gentes, e as faz perecer; espalha as gentes, e as faz levar para outro lugar.
Tira o coração aos cabeças das gentes da terra, e os faz vaguear pelos desertos sem caminho.
Nas trevas andam às apalpadelas, sem terem luz; e os faz vaguear como a borrachos.
Capítulo 13
Eis que tudo isto viram meus olhos; e meus ouvidos o ouviram, e entenderam.
Como vós outros o sabeis, o sei eu também: a vós vos não cederei.
Mas, na verdade, eu falarei ao Todo-Poderoso; e quero defender-me para com Deus.
Porque na verdade vós outros sois inventores de mentiras; e vós todos, médicos de nada.
Oxalá vos calásseis de todo! O que vos seria atribuído à sabedoria.
Ora ouvi vós minha defesa, e atentai para os argumentos de meus lábios.
Porventura por Deus falareis perversidade? E por ele falareis engano?
Ou fareis acepção de sua pessoa? Ou contendereis por Deus?
Ser-vos-ia bom se ele vos esquadrinhasse? Ou zombareis dele, como se zomba de homem algum?
Responder-vos-á duramente, se em oculto fizerdes acepção de pessoas.
Porventura, sua alteza vos não espantará? E seu temor não cairá sobre vós?
Vossas memórias são como a cinza; vossas alturas, como alturas de lodo.
Calai-vos perante mim, e falarei eu; que fique aliviado algum tanto!
Por que razão tiraria minha carne com meus dentes, e poria minha alma em minha palma?
Eis que, ainda que ele me matasse, porventura não esperaria nele? E contudo, meus caminhos defenderei perante ele.
Também ele será minha salvação; porém o hipócrita não virá perante seu rosto.
Ouvi vós com atenção minhas razões; e com vosso ouvidos, minha demonstração.
Eis que já tenho ordenado meu direito, e sei que serei declarado por justo.
Quem é o que ainda contenderá comigo? Porque agora me calarei, e darei o espírito.
Tão somente duas coisas não faças para comigo, e então me não esconderei de teu rosto:
Desvia tua mão longe de sobre mim, e teu terror me não espante.
E assim me chama, e eu te responderei; ou eu falarei, e tu me responde.
Quantas culpas e pecados tenho eu? Notifica-me minha transgressão, e meu pecado.
Por que escondes teu rosto, e me tens por teu inimigo?
Porventura, quebrantarás a folha arrebatada pelo vento? E perseguirás à pragana seca?
Porque escreves contra mim amarguras; e me fazes herdar as culpas de minha mocidade.
Também pões meus pés no tronco, e atentas por todas minhas veredas; e te pões marca nas solas de meus pés.
Envelhecendo-se, entretanto, ele como a podridão; e como o vestido que a traça rói.
Capítulo 14
O homem, nascido de mulher, é curto de dias, e farto de inquietação.
Sai como a flor, e logo é cortado; e foge como a sombra, e não subsiste.
Contudo, sobre este, abres teus olhos; e me trazes a juízo contigo.
Quem, do imundo, tirará o puro? Nem um sequer!
Já que seus dias estão determinados, contigo está o número de seus dias; e tu lhe puseste limites, e não passará além deles.
Desvia-te dele, para que cesse; até que, como o jornaleiro, tenha contentamento em seu dia.
Porque, mesmo para a árvore, há alguma esperança; de que, sendo também cortada, ainda se renovará, e seus renovos não cessarão.
Se sua raiz se envelhecer na terra, e seu tronco se amortecer no pó;
Ao cheiro das águas brotará, e dará ramos como a planta.
Porém, desfalecendo o homem, está abatido. E dando o homem o espírito, então onde está?
As águas se vão do lago; e o rio se esgota, e se seca.
Assim o homem jaz, e não se levanta; até que não mais haja céus, não acordarão, nem se erguerão de seu sono.
Quem dera me escondesses na sepultura, e me ocultasses até que tua ira se desviasse! E me pusesses um limite, e te lembrasses de mim!
Porém, morrendo o homem, porventura tornará a viver? Todos os dias de meu combate esperaria, até que viesse minha mudança?
Chama-me, e eu te responderei; e afeiçoa-te à obra de tuas mãos.
Porém agora, contas meus passos. Porventura, não vigias sobre meu pecado?
Minha transgressão está selada numa trouxa; e amontoas minhas iniquidades.
E na verdade, caindo a montanha, se desvanece; e a rocha se muda de seu lugar.
As águas gastam as pedras, e o pó da terra sufoca o que de si mesmo nascer nela: assim tu fazes parecer a atença do homem.
Sempre prevaleces contra ele, e passa; e demudando seu rosto, o despedes.
Seus filhos vêm a ter honra, e ele o não sabe; ou ficam atenuados, e não atenta por eles.
Mas estando sua carne ainda nele, tem dores; e estando sua alma nele, lamenta.
Capítulo 15
Então respondeu Elifaz, o temanita, e disse:
Porventura, dará o sábio ciência de vento por resposta? E encherá seu ventre do vento oriental?
Repreendendo com palavras que servem de nada? E com razões com que nada aproveita?
E tu, até o temor aniquilas; e diminuis a oração perante Deus.
Porque tua boca declara tua iniquidade; e tu escolheste a língua dos astutos.
Tua boca te condena, e não eu; e teus lábios testificam contra ti.
És tu, porventura, nascido o primeiro dos homens? Ou foste gerado antes dos outeiros?
Ou ouviste o secreto conselho de Deus? E só para ti retiraste a sabedoria?
Que sabes tu, que nós não saibamos? E que entendes, que não haja em nós outros?
Também há entre nós velhos de cãs e decrépitos, maiores em dias que teu pai.
Porventura, as consolações de Deus te são pequenas? Ou coisa alguma se oculta em ti?
Por que te arrebata teu coração? E por que pestanejam teus olhos?
Para que vires teu espírito contra Deus, e deixes sair tais razões de tua boca.
Que é o homem, para que seja puro? E o que de mulher nasce, para que fique justo?
Eis que em seus santos não confiaria, e nem os céus são puros aos seus olhos.
Quanto mais o abominável e fétido homem, que bebe a iniquidade como água!
Escuta-me, mostrar-to-ei; e o que vi, te contarei.
O que os sábios anunciaram; e ouvindo-o de seus pais, o não ocultaram.
Somente aos quais se dera a terra, e nenhum estranho passou por meio deles.
Todos os dias, o ímpio se dá pena a si mesmo; e tais anos, em grande número, se reservaram para o tirano.
O sonido dos horrores está em seus ouvidos; até na paz lhe sobrevém o assolador.
Não crê que tornará das trevas, porque está exposto à espada.
Anda vagueando por pão, aonde quer que haja; e bem sabe que já o dia das trevas está prestes, em sua mão.
Ânsia e tribulação o assombram; e prevalecem contra ele como o rei preparado para a peleja.
Porque estende sua mão contra Deus, e contra o Todo-Poderoso se embravece.
Arremete contra ele com a força de seu pescoço, e com seus grossos e levantados escudos.
Porquanto cobriu seu rosto com sua gordura, e engordou a coxa.
E habitou em cidades destruídas, como também em casas em que já se não morava; as quais estavam prestes para montões de pedras.
Não enriquecerá, nem subsistirá seu poder; nem se estenderá pela terra sua abundância.
Não escapará das trevas, a chama do fogo secará seu renovo; e desaparecerá com o sopro de sua boca.
Não confie, pois, na vaidade o que foi enganado; senão a mesma vaidade será sua recompensa.
Não sendo ainda chegado seu dia, ela se lhe cumprirá; porque seu ramo não reverdecerá.
Lançará suas uvas em agraço, como as da vide; e derribará sua flor, como a da oliveira.
Porque o ajuntamento dos hipócritas se fará solitário; e o fogo consumirá as tendas armadas de subornos.
Concebem trabalhos, e parem vaidade; e seu ventre obra enganos.
Capítulo 16
Respondeu porém Jó, e disse:
Ouvi muitas coisas como estas. Todos vós outros sois consoladores molestos.
Haverá, porventura, fim de palavras de vento? Ou que é o que te enfada, para assim responderes?
Ademais, falaria eu como vós outros falais? Se vossa alma estivesse no lugar de minha alma, travaria argumentos contra vós? Ou moveria minha cabeça contra vós?
Confortando-vos com minha boca, o pranto de meus lábios se reteria?
Se falo, minha dor não cessa; e calando, que mal me deixa?
Em verdade, agora me molestou: tu assolaste toda minha companhia.
Testemunho disto é que já me fizeste enrugado; e minha magreza já se levanta contra mim, e em meu rosto testifica contra mim.
Sua ira me despedaça, e ele me tem ódio: range seus dentes contra mim. Meu adversário aguça seus olhos contra mim.
Bocejam com sua boca contra mim, com desprezo me ferem nas queixadas; e contra mim em cheio se ajuntam todos.
Entregou-me Deus ao perverso; e nas mãos dos ímpios, me fez cair.
Descansado estava eu, porém ele me quebrantou; e pegou-me pelo toutiço, e despedaçou-me. E pôs-me por seu alvo.
Cercaram-me seus flecheiros, fendeu-me os rins, e não me poupou; e meu fel, derramou em terra.
Quebrantou-me com quebranto sobre quebranto; arremeteu contra mim como o violento.
Cosi saco sobre minha pele; e revolvi minha cabeça no pó.
Meu rosto todo está enlodado de chorar; e sobre as minhas pálpebras está a sombra da morte.
Não havendo, porém, em minhas mãos violência; e sendo pura minha oração.
Ah terra, não cubras meu sangue! E não haja lugar para deter meu clamor!
Eis que também agora, minha testemunha está no céu; e o que é sabedor de mim, está nas alturas.
Meus amigos são os que zombam de mim; mas meus olhos estão destilando para Deus.
Ah, se se pudesse contender com Deus pelo homem! Como o filho do homem, por seu amigo!
Porque poucos anos em número virão ainda; e eu seguirei o caminho, por onde não tornarei.
Capítulo 17
Meu espírito se vai corrompendo, meus dias se vão apagando, e já as sepulturas estão perante mim.
Porventura, não estão zombarias comigo? E meus olhos não tresnoitam em suas amarguras?
Promete agora, e dá-me fiança para contigo: quem há outro que me dê a mão?
Porque seus corações encobriste do entendimento; pelo que os não exaltarás.
O que lisonjeando fala aos amigos, também os olhos de seus filhos desfalecerão.
Pois a mim me pôs por ditado de povos; de modo que já sou abominação perante o rosto de cada qual.
Pelo que já meus olhos se escureceram de mágoa; e já todos meus membros são como a sombra.
Os retos pasmaram sobre isto; e o inocente se levantará contra o hipócrita.
E o justo seguirá seu caminho firmemente; e o puro de mãos irá crescendo em força.
Mas, na verdade, tornai todos vós outros, e vinde cá; porém sábio nenhum acho entre vós outros.
Já meus dias se passaram, meus pensamentos se arrancaram: as possessões do meu coração.
A noite me mudam em dia: a luz fazem chegar em presença das trevas.
Se eu esperar, a sepultura será minha casa: nas trevas estenderei minha cama.
À cova clamo, dizendo: Meu pai és! E aos bichos: Minha mãe e minha irmã sois!
Onde, pois, estaria agora minha atença? Minha atença, quem a poderá ver?
Às barras da sepultura descerão; quando juntamente repousar no pó, terei descanso.
Capítulo 18
Então respondeu Bildade, o suíta, e disse:
Até quando não fareis fim de palavras? Atentai bem, e então falaremos.
Por que somos estimados como bestas, e imundos aos vossos olhos?
Ó tu, que despedaças tua alma em tua ira!Será a terra deixada por tua causa!? E mudar-se-ão as rochas de seu lugar?
Na verdade, a luz dos ímpios se apagará; e a faísca de seu fogo não resplandecerá.
A luz se escurecerá em suas tendas; e sua lâmpada sobre ele se apagará.
Os passos de seu poder se estreitarão, e seu conselho o derribará.
Porque seus próprios pés o lançarão à rede; e andará nos fios enredados.
O laço o travará pelo calcanhar; e fortalecerá contra ele ao salteador.
Sua corda está escondida debaixo da terra, e sua armadilha na vereda.
Os assombros o espantarão do redor; e o farão correr de uma a outra parte, por onde quer que apresse os passos.
Seu poder será desbaratado, e a perdição está preparada à sua ilharga.
O primogênito da morte consumirá os ferrolhos de sua pele: consumirá seus ferrolhos!
Sua confiança será arrancada de sua tenda; e isto o fará caminhar para o rei dos assombros;
Os quais morarão em sua própria tenda, não lhe ficando nada; espalhar-se-á enxofre sobre sua morada.
De debaixo se secarão suas raízes, e de cima serão cortados seus ramos.
Sua memória perecerá da terra, e pelas praças não terá renome.
Da luz o lançarão nas trevas, e afugentá-lo-ão do mundo.
Não terá filho, nem neto entre seu povo; e resto nenhum dele ficará em suas moradas.
De seu dia se espantarão os descendentes; e os antigos serão sobressaltados de horror.
Assim que tais são as moradas do perverso, e este é o lugar do que não conhece a Deus.
Capítulo 19
Respondeu porém Jó, e disse:
Até quando entristecereis minha alma, e me quebrantareis com palavras?
Já dez vezes me envergonhastes: vergonha não tendes, nem vos espantais acerca de mim.
Seja, porém, que também em verdade errasse: comigo tresnoitará meu erro!
Se deveras vos levantais contra mim, e prosseguis contra mim meu opróbrio;
Sabei agora que Deus é o que me transtornou; e com sua rede me cercou.
Eis que clamo, dizendo: Violência me fazem; porém não sou ouvido. Grito, porém não há justiça.
Meu caminho entrincheirou, e já não posso passar; e sobre minhas veredas pôs trevas.
De minha honra me despojou, e tirou-me a coroa de minha cabeça.
Derribou-me derredor, e assim me vou; e arrancou, como a uma árvore, minha atença.
E fez inflamar contra mim sua ira; e estimou-me para consigo como a seus inimigos.
Juntas vieram suas tropas, e prepararam contra mim seu caminho; e puseram-se em campo ao redor de minha tenda.
A meus irmãos, longe os fez retirar de mim; e os que me conhecem, deveras me estranharam.
Meus parentes me deixaram, e meus conhecidos se esqueceram de mim.
Os forasteiros de minha casa, e minhas servas, me tiveram por estranho; e sou estrangeiro aos seus olhos.
Chamei a meu criado e ele me não respondeu, suplicando-lhe eu com minha própria boca.
Meu espírito é estranho à minha mulher; e tenho dó dos filhos de meu ventre.
Até os rapazes me desprezam; e levantando-me eu, falam contra mim.
Todos a quem comuniquei meu secreto conselho, me abominam; e até os que eu amava, se tornaram contra mim.
Meus ossos se apegaram à minha pele e à minha carne; e escapei só com a pele de meus dentes.
Compadecei-vos de mim, amigos meus, compadecei-vos de mim! Porque a mão de Deus me tocou.
Por que me perseguis como Deus, e de minha carne vos não fartais?
Quem me dera agora que minhas palavras se escrevessem! Quem me dera que se apontassem em um livro!
E que com pena de ferro e com chumbo, para sempre fossem esculpidas em uma penha!
Porque eu sei que meu Redentor vive, e que se levantará o último sobre o pó!
E roendo eles isto, depois de roída minha pele; então desde minha própria carne verei a Deus.
Ao qual eu verei para mim mesmo; e meus olhos o verão, e não os de outrem. E isto meus rins interiormente desejam.
Na verdade que devíeis dizer: Por que razão o perseguimos? Pois a raiz do sobredito se acha em mim.
Receai-vos da espada, porque já o furor está sobre os delitos da espada; para que assim saibais que haverá juízo.
Capítulo 20
Então Zofar, o naamatita, respondeu, e disse:
Por isso, meus pensamentos me fazem responder; e portanto, me apresso.
Eu ouvi a repreensão, que me envergonha; mas o espírito, desde meu entendimento, responde por mim.
Porventura, não sabes isto, que foi desde todo tempo? Desde que Deus pôs ao homem no mundo?
Que o júbilo dos ímpios é breve? E a alegria dos hipócritas, por um só momento?
Ainda que sua altura subisse até o céu, e sua cabeça chegasse até as nuvens,
Contudo, como seu próprio esterco, perecerá para sempre. E os que o houverem visto, dirão: Que é feito dele?
Como sonho voará, e não será achado; e será afugentado como a visão da noite.
O olho que já o viu, já nunca mais o verá; nem seu lugar olhará mais para ele.
Seus filhos procurarão agradar aos pobres, e suas próprias mãos restaurarão seu roubo.
Seus ossos se encherão de seus ocultos pecados; e juntamente se deitarão com ele sobre o pó.
Se o mal lhe é doce na boca, e ele o esconde debaixo de sua língua;
E o guarda, e o não deixa; antes, o retém entre seu paladar;
Sua comida se mudará em suas entranhas; fel de áspides será em seu interior.
Engoliu fazendas, porém vomitá-las-á: de seu ventre, Deus as lançará.
Veneno de áspides sorverá; língua de víbora o matará.
Não verá correntezas: rios e ribeiros de mel e manteiga.
Restituirá o trabalho, e não o engolirá; conforme ao poder de sua mudança, e não saltará de regozijo.
Porquanto oprimiu, desamparou aos pobres; e roubou a casa que não edificou.
Porquanto não sentiu sossego em seu ventre: de sua tão desejada fazenda, coisa nenhuma reterá.
Nada lhe sobejará, do que coma; pelo que sua fazenda não será durável.
Estando já cheia sua abastança, estará angustiado; toda mão dos miseráveis virá sobre ele.
Haja porém ainda algo do que possa encher seu ventre, contudo Deus mandará sobre ele o ardor de sua ira; e sobre ele lhe choverá em sua comida.
Ainda que fuja das armas de ferro, o arco de aço o atravessará.
Desembainhada a espada sairá de seu corpo, e resplandecendo virá de seu fel; e haverá sobre ele assombros.
Toda escuridão se ocultará em seus esconderijos; fogo não assoprado o consumirá, e ao que restar em sua tenda lhe irá mal.
Os céus manifestarão sua iniquidade, e a terra se levantará contra ele.
As rendas de sua casa serão transportadas: no dia de sua ira, todas se derramarão.
Esta, da parte de Deus, é a parte dos varão ímpio; e da parte de Deus, a herança de seus ditos.
Capítulo 21
Respondeu porém Jó, e disse:
Dai ouvidos atentamente a minhas razões, e seja isto por vossas consolações.
Suportai-me, e eu falarei; e havendo eu falado, então zombai.
Porventura, eu me queixo a algum homem? Porém ainda que assim fosse, por que meu espírito se não angustiaria?
Olhai para mim, e espantai-vos; e ponde a mão sobre a boca.
Porque quando me lembro disto, me perturbo; e minha carne é sobressaltada de horror.
Por que razão vivem os ímpios? Envelhecem, e ainda se fortalecem em poder.
Sua semente subsiste com eles em sua presença; e seus renovos estão perante seus olhos.
Suas casas têm paz, sem temor; e a vara de Deus não está sobre eles.
Seu touro cavalga, e não falha; sua vaca emprenha, e não move.
Mandam fora suas crianças como a rebanho, e seus filhos andam saltando.
Levantam a voz, ao som do tamboril e da harpa; e alegram-se ao som dos órgãos.
Em prosperidade gastam seus dias, e em um momento descem à sepultura.
E todavia dizem a Deus: Desvia-te de nós outros! Porque nada folgamos com conhecimento de teus caminhos.
Que coisa é o Todo-Poderoso, para que nós o sirvamos? E que nos aproveitará o acolher-nos a ele?
Vede, porém, que seu bem não está em suas mãos. Esteja, pois, longe de mim o conselho dos ímpios!
Quantas vezes sucede que a candeia dos ímpios se apaga, e sua perdição lhes sobrevêm de improviso! E Deus, em sua ira, lhes reparte dores!
Porque são como palha diante do vento; e como a pragana, que arrebata o pé de vento.
Deus guarda sua violência para seus filhos; e de tal modo lhe dá o pago, que bem o sente.
Seus olhos vêem sua ruína; e ele bebe do furor do Todo-Poderoso.
Porque que prazer teria em sua casa depois de si, cortando-se-lhe o número de seus meses?
Porventura a Deus se ensinaria ciência, julgando ele aos excelsos?
Este morre na força de sua plenitude, estando todo quieto e descansado.
Seus tarros estavam cheios de leite, e o tutano de seus ossos umedecido.
Ao contrário, estoutro morre em amargura de coração; não havendo comido bem.
Juntamente jazem no pó, e os bichos os cobrem.
Eis que sei vossos pensamentos, como também os maus intentos com que me fazeis violência.
Porque direis: Que é feito da casa do príncipe? E que é feito da tenda das moradas dos ímpios?
Porventura, o não perguntastes aos que passam pelo caminho? E não conheceis seus sinais?
Que o mau é preservado para o dia da destruição; e são levados ao dia dos furores.
Quem lhe mostrará seu caminho na sua cara? E quem lhe dará o pago do que faz?
Finalmente é levado às sepulturas; pois cuida no montão.
Os torrões do vale lhe são doces; e atrai a si a todo homem, e dos que houve antes dele não há número.
Como, pois, me consolais com vaidade? Pois em vossas respostas ainda resta transgressão.
Capítulo 22
Então respondeu Elifaz, o temanita, e disse:
Porventura, será o homem de algum proveito a Deus? Antes, a si mesmo cada prudente será proveitoso.
Ou tem o Todo-Poderoso prazer em que tu sejas justo? Ou coisa alguma de ganho, de que aperfeiçoes teus caminhos?
Ou julgará por ti, pelo temor que tem de ti? E virá contigo a juízo?
Porventura, não é grande tua malícia? E tuas iniquidades não têm fim?
Porque penhoraste a teus irmãos sem causa alguma; e aos nus, despiste as vestes.
Não deste de beber água ao cansado, e ao faminto retiveste o pão.
Mas para o violento era a terra; e a quem se teve respeito, habitava nela.
E às viúvas, despediste vazias; e os braços dos órfãos foram quebrantados.
Pelo que há laços ao redor de ti; e pavor repentino te perturbou.
Ou as trevas te perturbam, que antes não viste; e a abundância de água te cobre.
Porventura, não está Deus na altura dos céus? Olha, pois, para o cume das estrelas, quão levantadas estão!
Pelo que dizes: Que sabe Deus disto? Porventura, julgará por entre a escuridão?
As nuvens são esconderijo para ele, para que não veja; e pelo circuito dos céus passeia.
Porventura queres guardar a vereda do século passado, a qual pisaram os varões injustos?
Os quais foram enrugados antes do tempo; sobre cujo fundamento um dilúvio se derramou.
Diziam a Deus: Desvia-te de nós! E que é o que o Todo-Poderoso lhes há de fazer?
Sendo ele o que lhes enchera suas casas de bens. Pelo que o conselho dos ímpios esteja longe de mim!
Os justos o verão, e se alegrarão; e o inocente escarnecerá deles.
Porquanto nosso estado não foi destruído; mas o fogo consumiu o resto deles.
Acostuma-te, pois, a ele, e tem paz; e por isso o bem te sobrevirá.
Aceita agora a Lei de sua boca, e põe suas palavras em teu coração.
Se te converteres ao Todo-Poderoso, serás edificado: afastarás a iniquidade de tua tenda.
Então terás mais ouro que terra; e como pedras de ribeiros, ouro de Ofir.
E até o Todo-Poderoso te será ouro abundante, e tua prata amontoada.
Porque então te deleitarás no Todo-Poderoso, e levantarás teu rosto a Deus.
Deveras orarás a ele, e ele te ouvirá; e teus votos lhe pagarás.
Determinando tu algum negócio, ser-te-á firme; e em teus caminhos te resplandecerá a luz.
Quando abaterem a alguém, e tu disseres: Haja exaltação! Deus salvará ao baixo de olhos.
E livrará até ao que não é inocente; porque fica livre pela pureza de tuas mãos.
Capítulo 23
Respondeu porém Jó, e disse:
Até hoje minha queixa é rebeldia? Mais trabalhosa é minha praga que meu gemido!
Ah, se eu soubesse que o poderia achar! Então chegaria a seu tribunal.
Com boa ordem proporia meu direito perante sua face; e minha boca encheria de argumentos.
Saberia as palavras que me responderia; e entenderia o que me diria.
Porventura, segundo a grandeza de seu poder contenderia comigo? Não, antes ele atentaria para mim.
Ali o reto pleitearia com ele; e eu me livraria para sempre de meu Juiz.
Eis que, se me adianto, ali não está; se torno atrás, não o reparo.
Se obra à esquerda, não o vejo; se se encobre à direita, não o enxergo.
Porém ele conhece meu caminho: prove-me, e sairei como o ouro.
A seus passos, meus pés se firmaram: seu caminho guardei, e não me desviei.
O preceito de seus lábios nunca retirei; e as palavras de sua boca guardei mais que minha porção.
Mas se ele se opuser a alguém, quem então o desviará? O que sua alma quiser, isso fará.
Porque cumprirá o que está ordenado acerca de mim; e muitas coisas como estas, ainda tem consigo.
Pelo que me perturbo perante sua face: considero-o, e temo-me dele.
Porque Deus macerou meu coração; e o Todo-Poderoso me perturbou.
Porquanto não fui desfeito antes das trevas; e de minha face, encobriu a escuridão.
Capítulo 24
Por que do Todo-Poderoso não se encobririam os tempos, já que, os que o conhecem, não vêem os dias dele?
Até dos limites lançam mão: roubam os rebanhos, e os apascentam.
Levam o asno do órfão, penhoram o boi da viúva.
Aos necessitados fazem arredar-se do caminho; e os miseráveis da terra juntos se escondem deles.
Eis que até os asnos monteses no deserto saem à sua obra, madrugando eles a roubar; o próprio ermo lhe dá mantimento a ele, e a seus moços.
No campo, segam seu pasto; e a vinha do ímpio vindimam.
Seus trabalhadores passam a noite nus, sem roupa; não tendo eles coberta contra o frio.
Das correntezas das montanhas são molhados; e não tendo refúgio, abraçam-se com as rochas.
Ao orfãozinho, os ímpios arrancam do peito; e penhoram o que há sobre o pobre.
Aos nus fazem ir sem veste, e famintos aos que trazem gavelas.
Entre suas paredes espremem o azeite: pisam os lagares, e ainda têm sede.
Desde as cidades suspiram os homens, e a alma dos feridos exclama. E contudo, Deus lho não imputa como coisa indecente.
Eles estão entre os que se opõem à luz: não conhecem seus caminhos, e não permanecem em suas veredas.
De madrugada se levanta o homicida, mata ao pobre e necessitado; e de noite é como o ladrão.
Até o olho do adúltero aguarda o entre lusco-fusco da noite, dizendo: Olho nenhum me verá. E o rosto se rebuça.
Nas trevas da noite mina as casas que de dia se assinalaram: não sabem da luz.
Porque a manhã, a todos eles juntos, lhes é sombra de morte; porque sente pavores de sombra de morte.
É ligeiro como sobre a superfície das águas, maldita é sua parte sobre a terra; não se vira para o caminho das vinhas.
A secura e o calor desfazem as águas da neve: assim a sepultura o faz aos que pecaram.
A madre se esquecerá dele, os bichos lhe serão doces, nunca mais haverá lembrança dele; e a iniquidade se quebrará como pau.
Sustenta à estéril, que não pare; e sendo ela viúva, ninguém lhe fará bem.
Até aos poderosos atrai com sua força; e se se levanta, não há vida segura.
Se Deus lhe dá descanso, estriba nisso; seus olhos, porém, estão postos em seus caminhos.
Por um pouco se alçam, e logo desaparecem, são abatidos, encerrados como todos; e cortados como as cabeças das espigas.
Se assim, logo, não é, quem me desmentirá? E quem desfará minhas razões?
Capítulo 25
Então respondeu Bildade, o suíta, e disse:
Domínio e temor estão junto a ele, e faz paz em suas alturas.
Porventura, há número de suas tropas? E sobre quem se não levanta sua luz?
Como, pois, o homem seria justo para com Deus? E como seria puro aquele que nasce de mulher?
Olha daqui até a Lua, e não dará resplendor; até as próprias estrelas não são puras aos seus olhos.
E quanto mais o homem, que é um bicho de terra! E o filho do homem, que não é mais que um bichinho!
Capítulo 26
Porém Jó respondeu, e disse:
Como ajudaste ao que não tinha força? E sustentaste ao braço que não tinha vigor?
Como aconselhaste ao que não tinha ciência? E por inteiro lhe fizeste saber a causa, assim como era?
A quem relataste as tais palavras? E cujo é o espírito que saiu de ti?
Os mortos são atormentados; e treme o que há debaixo das águas, com seus moradores.
O inferno está nu perante ele, e não há coberta para a perdição.
Ao norte, estende sobre o vazio; a terra, pendura no nada.
As águas amarra em suas nuvens; e todavia, a nuvem se não rasga debaixo delas.
Tem firme a planeza de seu trono; e sobre ela estende sua nuvem.
Assinalou limite sobre a superfície das águas ao redor delas, até a consumação da luz e das trevas.
As colunas do céu tremem, e se espantam de sua ameaça.
Com sua força abala ao mar, e com seu entendimento abate sua braveza.
Por seu Espírito ornou os céus; sua mão formou a serpente comprida.
Eis que estas coisas são só as bordas de seus caminhos; e quão pequeno é o sonido da palavra que temos ouvido dele! Quem, pois, entenderia o trovão de seu poder?
Capítulo 27
E prosseguiu Jó em proferir seu dito, e disse:
Vive Deus, que me tirou meu direito; e o Todo-Poderoso, que amargurou minha alma;
Que enquanto meu fôlego estiver em mim, e o sopro de Deus em minhas narinas;
Meus lábios não falarão iniquidade, e minha língua não pronunciará engano.
Tal nunca eu faça, que a vós vos justifique: até que eu não dê o espírito, nunca tirarei de mim minha sinceridade.
À minha justiça me apegarei, e não a deixarei ir: meu coração não tem que me exprobar, por todos meus dias.
Seja como o ímpio meu inimigo; e como o perverso o que se levantar contra mim.
Porque qual será a atença do hipócrita, quando for acabado? Quando Deus lhe arrancar sua alma?
Porventura Deus ouvirá seu clamor, sobrevindo-lhe a tribulação?
Ou deleitar-se-á no Todo-Poderoso? Ou invocará a Deus a todo tempo?
Ensinar-vos-ei acerca da mão de Deus; e não vos encobrirei o que está com o Todo-Poderoso.
Eis que todos vós outros já o vistes. Por que, pois, vos esvaeceis em vossa vaidade?
Esta pois é a parte do ímpio varão para com Deus, e a herança que os tiranos receberão do Todo-Poderoso:
Se seus filhos se multiplicarem, será para a espada; e seus descendentes não se fartarão de pão.
Os que tiver de resto, na morte serão enterrados; e suas viúvas não chorarão.
Se amontoar prata como pó, e preparar vestes como lodo;
Ele as preparará, porém o justo as vestirá; e o inocente repartirá a prata.
Edificará sua casa como a traça, e como a cabana que o guarda faz.
Rico se deitará, e não será recolhido; seus olhos alguém abrirá, mas ele já não será.
Pavores o pegarão como águas; pé de vento o arrebatará de noite.
O vento oriental o levará, e ir-se-á; e em tempestade, o empurrará de seu lugar.
E Deus lançará isto sobre ele, e não lhe poupará; e irá fugindo de sua mão.
Cada qual baterá por ele as palmas das mãos, e desde ser lugar lhe assobiará.
Capítulo 28
Na verdade que, para a prata, há saída; e para o ouro, lugar em que o derretem.
O ferro se toma do pó; e da pedra, se funde o metal.
O fim que Deus pôs às trevas, ele mesmo esquadrinha, e isso segundo toda a extremidade delas; como também a pedra da escuridão e da sombra da morte.
Transbordam os ribeiros junto ao que habita acerca deles, de maneira que se não possa passar a pé; então são esgotados do homem, e vão-se.
Quanto à terra, o pão procede dela; e debaixo de si, se converte como em fogo.
Suas pedras são o lugar da safira; e pozinhos de ouro tem Deus.
A vereda que não soube a ave de rapina, e que não viram os olhos do milhafre.
Nunca a pisaram filhos de animais altivos, nem o feroz leão passou por ela.
No seixal põe sua mão, e de raiz transtorna os montes.
Dos rochedos, faz sair rios; e seus olhos vêem todo o precioso.
Os rios tapa, e nem uma gota sai deles; e o oculto, tira à luz.
Porém donde se achará a sabedoria? E onde está o lugar da inteligência?
O homem não sabe sua valia, e não se acha na terra dos viventes.
O abismo diz: Não está em mim. E o mar diz: Nem comigo tampouco.
Nem por ouro fino se pode dar, nem se pesar contra prata.
Nem se pode comprar por ouro de Ofir; nem tampouco pelo precioso ônix, ou safira.
Com ela se não pode igualar o ouro, ou o cristal; nem tampouco trocar por joia de ouro maciço.
Nem do Ramote nem do Gabis haverá alguma lembrança; porque mais importa tirar a sabedoria que pérolas.
O topázio de Cuxe se não pode igualar com ela; nem se pode comprar por ouro puro.
Donde, pois, vem a sabedoria? E onde está o lugar da inteligência?
Porque está encoberta aos olhos de todo vivente, e oculta às aves do céu.
A perdição e a morte dizem: Com nossos ouvidos, ouvimos sua fama.
Deus entende seu caminho, e ele sabe seu lugar.
Porque ele atenta até aos confins da terra, e vê o que há debaixo de todos os céus.
Pondo peso ao vento, e tomando a medida das águas.
Pondo limitada ordem à chuva, e caminho ao relâmpago dos trovões.
Então a viu, e relatou; e preparou-a, e também a esquadrinhou.
E disse ao homem: Eis que o temor do Senhor é a sabedoria; e o desviar-se do mal, a inteligência.
Capítulo 29
E prosseguiu Jó em proferir seu dito, e disse:
Ah, quem me dera que fosse como nos meses passados! Como nos dias em que Deus me guardava!
Quando fazia resplandecer sua candeia sobre minha cabeça, e eu à sua luz caminhava pelas trevas.
Como era nos dias de minha mocidade, quando o secreto de Deus estava sobre minha tenda.
Quando o Todo-Poderoso ainda estava comigo, e meus moços ao redor de mim.
Quando lavava meus pés na manteiga, e da rocha me corriam ribeiros de azeite.
Quando saía à porta pela cidade, e na praça fazia preparar minha cadeira.
Os moços me viam, e se escondiam; e até os decrépitos se levantavam, e se punham em pé.
Os maiorais detinham as palavras, e punham a mão sobre a sua boca.
A voz dos príncipes se escondia, e sua língua se apegava a seu palato.
Ouvindo-me algum ouvido, me tinha por bem-aventurado; e vendo-me algum olho, dava testemunho de mim.
Porque eu livrava ao aflito que clamava, como também ao órfão que não tinha ajudador.
A bênção do que ia perecendo, vinha sobre mim; e o coração da viúva eu fazia cantar alegre.
Vestia-me de justiça, e ela me vestia a mim: meu juízo me era como capa, e chapéu real.
Eu era olhos ao cego, como também pés ao manco.
Aos necessitados, era pai; e a contenda que não sabia, inquiria com diligência.
Quebrava os queixais dos perversos, e de seus dentes tirava a presa.
E dizia: Em meu ninho darei o espírito; e como areia, multiplicarei os dias.
Minha raiz se estendia junto às águas, e o orvalho tresnoitava sobre meus ramos.
Minha honra se renovava em mim, e meu arco se reforçava em minha mão.
Ouvindo me esperavam, e calavam-se a meu conselho.
Após minha palavra não replicavam, e minhas razões destilavam sobre eles.
Porque esperavam-me como à chuva; e abriam sua boca como à chuva tardia.
Se me ria para eles, não o criam; e não faziam abater a luz de minha face.
Se eu queria ir ter com eles, assentava-me à cabeceira; e habitava como rei entre tropas, como aquele que consola aos chorosos.
Capítulo 30
Porém agora, se riem de mim os de menos dias que eu; cujos pais eu desdenhara de os pôr com os cães do rebanho de meu gado.
De que também me serviria a força de suas mãos? Pois já de velhice perecera neles.
De pura míngua e fome andavam sós; e acolhiam-se aos lugares secos, dantes já assolados e desertos.
Apanhavam malvas junto aos arbustos, e seu mantimento eram as raízes dos zimbros.
Do meio do povo eram lançados, e apupavam-lhes como a ladrões.
Para habitarem nos barrancos dos vales, e nas cavernas da terra e das rochas.
Bramavam entre os arbustos, e ajuntavam-se debaixo do silvado.
São filhos de doidos, e filhos de renome nenhum: mais abatidos que a própria terra.
Porém agora, sou eu sua chacota; e sirvo-lhes de rifão.
Abominam-me, e alongam-se de mim; e nem ainda o cuspe detêm perante meu rosto.
Porque Deus desatou meu cordão, e oprimiu-me; pelo que sacudiram de si o freio perante meu rosto.
À mão direita se levantam os rapazes: repuxam meus pés, e preparam contra mim o caminho de sua perdição.
Derribam meu caminho; promovem minha miséria, não necessitam de ajudador.
Vêm contra mim como por uma larga rotura; e revolvem-se entre a assolação.
Pavores se tornam contra mim: cada qual deles, como vento, persegue minha nobre alma, e como nuvem passou minha felicidade.
Pelo que, agora, minha alma se derrama em mim; e dias de aflição me pegam.
De noite, fura meus ossos em mim; e os pulsos de minhas veias não descansam.
Pela grandeza da força da dor, se demudou meu vestido; e cinge-me ela como a gola de minha roupeta.
Lançou-me na lama; e fiquei semelhante ao pó, e à cinza.
Clamo a ti, porém tu não me respondes; estou em pé, porém somente me contemplas.
Tornaste-te cruel contra mim: com a força de tua mão, me resistes odiosamente.
Levantas-me sobre o vento, fazes-me cavalgar sobre ele; e derretes-me o ser.
Porque bem sei eu que me tornarás à morte, e à casa do determinado ajuntamento de todos os viventes.
Porém não estenderá a mão para o montão de terra, se houve clamor neles contra mim em sua desventura.
Porventura, não chorei pelo que tinha duros dias? Ou não se angustiou minha alma pelo necessitado?
Todavia, aguardando eu o bem, então me veio o mal; e esperando eu a luz, veio a escuridade.
Minhas entranhas me fervem, e não estão quietas: os dias da aflição me preveniram.
Denegrido ando, porém não do sol; e levantando-me na congregação, exclamo.
Irmão me fiz dos dragões, e companheiro dos avestruzes.
Minha pele se enegreceu sobre mim, e meus ossos estão inflamados da sequidão.
Pelo que minha harpa se tornou em lamentação, e meus órgãos em vozes de lamentadores.
Capítulo 31
Fiz concerto com meus olhos: como, pois, atentaria para a donzela?
Porque qual seria a parte de Deus, para mim, lá de cima? Ou a herança do Todo-Poderoso, das alturas?
Porventura, a perdição não é para o perverso? E estranheza, para os obradores de iniquidade?
Ou não vê ele meus caminhos? E todos meus passos, não conta?
Se andei com vaidade, e meu pé se apressou ao engano;
Pese-me em balanças fiéis, e saberá Deus minha sinceridade.
Se meus passos se desviaram do caminho; e meu coração se foi após meus olhos, e a minhas mãos se apegou coisa alguma;
Semeie eu, e outro coma; e meus renovos se arranquem!
Se meu coração se deixou engodar após mulher alguma, ou espreitei à porta de meu próximo;
Minha mulher moa para outro, e outros se encurvem sobre ela!
Porque é infâmia, e é delito pertencente aos juízes.
Porque é fogo que consome até a perdição, e desarraigaria toda minha renda.
Se desprezei o direito de meu servo ou de minha serva, tendo comigo contenda;
Que faria eu, quando Deus se levantasse? E inquirindo a causa, que lhe responderia?
Ou o que me fez no ventre, não o fez também a ele? Ou não nos preparou do mesmo modo na madre?
Se retive o que os pobres desejavam, ou fiz desfalecer os olhos da viúva;
E sozinho comi meu bocado, e o órfão não comeu dele.
(Porque desde minha mocidade foi crescendo comigo, como seu pai; e desde o ventre de minha mãe, a guiei).
Se a alguém vi perecer por falta de veste, e ao necessitado não ter nada por coberta;
Se sua cintura não me bendisse, quando ele se aquentava com o velo de meus cordeiros;
Se movi minha mão contra o órfão, porquanto via minha ajuda na porta;
Minha espádua caia de meu ombro, e meu braço se quebre de sua cana!
Porque o castigo de Deus era para mim um assombro, e eu não podia com sua alteza.
Se no ouro pus minha esperança; ou disse ao fino ouro: Tu és minha confiança;
Se me alegrei de que minha fazenda era muita, e de que minha mão alcançara muito;
Se olhei para o Sol, quando resplandecia; ou para a Lua, indo gloriosa;
E meu coração se deixou engodar em oculto, e minha boca beijou minha mão;
Também isto seria delito pertencente ao juiz; pois assim negaria ao Deus lá de cima.
Se me alegrei da desgraça de meu aborrecedor, e me abalei quando o mal o achou;
(Também não deixei pecar a meu paladar, desejando sua morte com maldição)
Se a gente de minha tenda não disse: Ah, quem nos dera de sua carne! Que nunca nos fartaríamos dela!
O estrangeiro não passava a noite na rua: minhas portas abria ao caminhante.
Se como Adão encobri minhas transgressões, ocultando meu delito em meu seio;
Porque temeria uma grande multidão, e o mais desprezível das famílias me espavoreceria; por isso me calaria, e não sairia da porta.
Ah, quem me dera a quem me ouvisse… Eis aqui minha demanda: o Todo-Poderoso me responda. E meu adversário forme libelo.
Porventura, não o traria a meus ombros? Ou não mo ataria por diadema?
O número de meus passos lhe mostraria: tomá-lo-ia por guia.
Se minha terra clamar contra mim, e seus regos juntamente chorarem;
Se comi sua novidade sem dinheiro, e fiz ofegar a alma de seus donos;
Por trigo me produza cardos; e por cevada, má erva. Aqui se acabam as palavras de Jó.
Capítulo 32
Então aqueles três varões cessaram de responder a Jó; porquanto era justo aos seus próprios olhos.
E acendeu-se a ira de Eliú, filho de Baraqueel, o buzita, da geração de Rão: contra Jó se acendeu sua ira, porquanto mais justificava a si mesmo que a Deus.
Também sua ira se acendeu contra seus três amigos; porquanto, não achando o que responder, todavia condenavam a Jó.
Eliú, porém, esperou a Jó naquela prédica; porquanto tinham mais idade que ele.
Vendo pois Eliú que já não havia resposta na boca daqueles três varões, sua ira se acendeu.
Pelo que respondeu Eliú, filho de Baraqueel, o buzita, e disse: De menos idade sou eu, e vós sois já bem velhos, pelo que tive receio e temi declarar-vos minha opinião.
Dizia eu: Falem os dias. E a multidão dos anos, faça saber sabedoria.
Na verdade, o Espírito o faz, estando no homem; e a inspiração do Todo-Poderoso os faz entendidos.
Os grandes não são os sábios, nem os velhos entendem o direito.
Pelo que digo: Dai-me ouvidos. E também eu declararei minha opinião.
Eis que aguardeis a vossas palavras, e virei meus ouvidos a vossas considerações; até que buscásseis razões.
Atentando, pois, para vós outros, eis que ninguém de vós há que possa convencer a Jó; nem responda a suas razões.
Para que não digais: Achamos sabedoria. Deus o derribe, e não homem.
Tampouco ele endereçou contra mim palavras algumas; nem lhe responderei com vossas palavras.
Estão pasmos, não respondem mais: faltam-lhes as palavras.
Esperei, pois, porém não falam; porque já pararam, e não respondem mais.
Também eu, pois, responderei minha parte; também eu declararei minha opinião.
Porque estou cheio de palavras, e o espírito de meu interior me aperta.
Eis que meu interior é como mosto que não está aberto, e virá a arrebentar como odres novos.
Falarei, pois, e respirarei; abrirei meus lábios, e responderei.
Que eu não faça acepção de pessoas, nem use de sobrenomes com o homem!
Porque não sei usar de sobrenomes; doutro modo, meu Fazedor em breve me retiraria.
Capítulo 33
Assim na verdade, ó Jó, ouve minhas razões; e dá ouvidos a todas minhas palavras.
Eis que já abri minha boca: já fala minha língua debaixo de meu palato.
Minhas razões pronunciarão a sinceridade de meu coração, e a pura ciência de meus lábios.
O Espírito de Deus me fez; e a expiração do Todo-Poderoso me vivificou.
Se é que podes, responde-me: dispõe-te perante mim, e persiste.
Eis que sou de Deus como tu; do lodo também eu fui cortado.
Eis que meu terror não te perturbará a ti, nem minha mão se agravará sobre ti.
Em verdade que disseste a meus ouvidos, e eu ouvi pronunciar as razões:
“Limpo estou sem transgressão: puro sou, e não tenho culpa.
Eis que acha em mim achaques; por isso, me tem por seu inimigo.
Põe meus pés no tronco, e atenta por todas minhas veredas”.
Eis que nisto, te respondo, não foste justo; porque maior é Deus que o homem.
Por que razão contendeste contra ele? Porque ele não responde acerca de todos seus feitos.
Antes, Deus fala uma vez; porém não torna a dizer a segunda.
Em sonho, ou em visão de noite, quando o sono profundo cai sobre os homens; e se adormecem na cama;
Então o revela ao ouvido dos homens, e sela-lhes seu ensino;
Para desviar ao homem de sua má obra, e esconder do varão a soberba;
Para desviar sua alma da cova, e sua vida de passá-la à espada.
Também em sua cama é com dores castigado, como também a multidão de seus ossos com violenta dor.
De modo que sua vida abomina até o pão; e sua alma, a desejável comida.
Sua carne desaparece à vista dos olhos; e seus ossos, que dantes não se viam, agora aparecem.
E sua alma se vai chegando à cova, e sua vida às coisas que matam.
Se com ele, pois, houver um mensageiro ou intérprete, um só de mil; para anunciar ao homem sua retidão;
Então terá misericórdia dele, e lhe dirá: Livra-o, que não desça à cova, pois já achei resgate.
Sua carne se reverdecerá mais do que era na mocidade; e tornará aos dias de sua juventude.
Deveras orará a Deus, o qual se agradará dele, e verá sua face com júbilo; e tornará ao homem sua justiça.
Atentará para os homens, e dirá: Pequei, e perverti o direito, o que não me convinha;
Porém Deus livrou minha alma, para que não se passasse à cova; e assim minha vida vê a luz.
Eis que tudo isto opera Deus, duas ou três vezes para com o homem.
Para desviar sua alma da cova, e o alumiar com a luz dos viventes.
Atenta, pois, ó Jó, e escuta-me; cala-te, e eu falarei.
Se houver razões, responde-me; fala, pois, porque desejo justificar-te.
Quando não, tu me escuta; cala-te, e ensinar-te-ei sabedoria.
Capítulo 34
Respondeu mais Eliú, e disse:
Dai ouvidos, vós sábios, a minhas razões; e vós entendidos, inclinai os ouvidos a mim.
Porque o ouvido prova as palavras, como o paladar degusta a comida.
O que é direito, escolhamos para nós; e conheçamos entre nós o que é bom.
Porque Jó disse: “Sou justo. E Deus me tomou meu direito.
Em meu direito, me é forçoso mentir; minha flecha é dolorosa, sem transgressão minha alguma”.
Que homem há como Jó, que bebe as zombarias como água?
E caminha em companhia com os obradores de maldade? E está para andar com homens ímpios?
Porque disse: De nada aproveita ao homem, de ter complacência em Deus.
Pelo que vós outros, varões de entendimento, escutai-me: Deus esteja fora de impiedade, e o Todo-Poderoso fora de perversidade!
Porque, segundo a obra do homem, lhe paga; e segundo o caminho de cada um, lho faz achar.
Também em verdade, Deus não se há impiamente; nem o Todo-Poderoso perverte o direito.
Quem lhe pediu conta do governo da terra? E quem dispôs a todo o mundo?
Se pusesse seu coração contra ele, recolheria para si seu espírito e seu fôlego.
Toda carne juntamente daria o espírito, e o homem se tornaria ao pó.
Se, pois, há em ti entendimento, ouve isto; e inclina os ouvidos ao que provo com razões.
Porventura, o que aborrece o direito, lhe ataria as feridas? E condenarias tu ao extremamente justo?
Ou dir-se-ia a um rei: Ó Belial? E a algum dos príncipes: Ó ímpio?
Quanto menos àquele que não faz acepção de pessoas de príncipes, nem estima ao rico mais que ao pobre: porque são todos obras de suas mãos.
Num momento falecem, e até à meia-noite os povos são sacudidos, e passam; e o poderoso será tomado sem mão.
Porque seus olhos atentam para os caminhos de cada qual; e vê todos seus passos.
Nem trevas nem sombra de morte há, em que os obradores de maldade se possam encobrir.
Porque não faz tanto caso do homem, que contra Deus possa entrar em juízo.
Quebranta aos fortes, sem que se possa inquirir; e põe outros em seu lugar.
Pelo que conhece suas obras; de noite os transtorna, e ficam esmiuçados.
Como a ímpios que são, juntamente os espanca, em lugar em que há quem o veja.
Porquanto se desviaram de após ele; e não entenderam nenhum de seus caminhos.
Para trazer sobre ele o clamor do pobre, e ouvir o clamor dos aflitos.
Se ele se aquietar, quem então condenará? Se, porém, encobrir o rosto, quem então atentará para ele? E isto tanto para todo um povo, como para um homem só.
Para que o homem hipócrita nunca mais reine, e não haja laços do povo.
Pois dirá ele, porventura, a Deus: Estou levantado, não perecerei?
O demais do que vejo, ensina-mo tu; se fiz alguma maldade, nunca mais a hei de fazer.
Virá de ti o como a outrem o recompensará, pois tu o desprezas? Farás tu, pois, e não eu, a escolha? Que é, logo, o que sabes? Fala.
Os homens de entendimento dirão comigo, e o varão sábio me ouvirá:
Que Jó não falou com ciência, e a suas palavras falta prudência.
Pai meu, provado seja Jó para sempre! Por amor de suas respostas entre os homens malignos!
Porque a seu pecado acrescenta transgressão, entre nós bate as palmas das mãos; e multiplica suas razões contra Deus.
Capítulo 35
Respondeu mais Eliú, e disse:
Porventura, isto te parece direito? Que digas “maior é minha justiça do que a de Deus”?
Porque disseste, de que te serviria ela? Ou de que mais me aproveitarei, do que de meu pecado?
Eu te darei a resposta: a ti, e a teus amigos contigo.
Atenta para os céus, e vê; e contempla as regiões do ar, que são mais altas que ti.
Se pecares, que mal traçarás contra ele? E se tuas transgressões se multiplicarem, que mal lhe farás?
Se fores justo, que lhe darás com isso? Ou que receberá ele de tua mão?
Tua impiedade seria contra outro tal como tu; e tua justiça aproveitaria ao filho do homem.
Por causa da grandeza da opressão, bradam os oprimidos; e exclamam por causa do braço dos grandes.
Porém ninguém diz: Onde está Deus, meu fazedor? O que entrenoite dá salmos.
Que nos faz mais doutos do que os animais da terra, e nos faz mais sábios do que as aves dos céus.
Ali clamam, porém ele não responde: por causa da arrogância dos maus.
O certo é que Deus não ouvirá à vaidade, nem o Todo-Poderoso atentará para ela.
E quanto ao que disseste, que o não vejas: juízo há perante sua face, pelo que espera nele.
Mas agora, ainda que a ninguém sua ira visitasse; nem advertisse muito na multidão dos pecadores;
Contudo Jó ociosamente abriu sua boca; e sem ciência, multiplicou palavras.
Capítulo 36
Prosseguiu ainda Eliú, e disse:
Espera-me um pouco, e mostrar-te-ei: que ainda há razões por Deus.
Desde longe repetirei minha opinião, e a meu Criador atribuirei a justiça.
Porque na verdade, minhas palavras não serão falsas; e contigo está um que é sincero em sua opinião.
Eis que Deus é mui grande, e contudo a ninguém despreza: grande é em força de coração.
Não deixa viver ao ímpio, e faz justiça aos aflitos.
Do justo não tira seus olhos; também estão com os reis no trono, ali os assenta para sempre, e assim são exaltados.
E se, estando presos em grilhões, os detêm amarrados com cordas de aflição;
Então lhes faz saber suas próprias obras; e suas transgressões, porquanto prevaleceram nelas.
E revela-lho a seus ouvidos, para seu ensino; e diz-lhes que se convertam da maldade.
Se o ouvirem, e o servirem; acabarão seus dias em bem, e seus anos em delícias.
Porém se o não ouvirem, à espada os passarão; e expirarão sem conhecimento.
E os hipócritas de coração amontoam ira; e amarrando-os ele, não clamam.
Acabará sua idade em sua mocidade, e sua vida entre os sodomitas.
Ao aflito, porém, tirará de sua aflição; e na opressão, o revelará a seus ouvidos.
Assim também te desviará a ti da boca da angústia, para largura em que não haja aperto; e as iguarias de tua mesa serão cheias de gordura.
E estarás satisfeito com o juízo do ímpio: o juízo e o direito te sustentarão.
Porquanto há furor, guarda-te de que porventura te não empurre com uma pancada; e por grande preço te não poderiam retirar dali.
Estimaria ele tanto tuas riquezas, ou esforços alguns de força; que por isso não estivesses em aperto?
Não suspires pela noite, na qual os povos sejam tomados de seu lugar.
Guarda-te, e não te tornes à maldade; porquanto nisto a escolheste, por causa de tua miséria.
Eis que Deus é alto em sua força: que doutor, pois, há como ele?
Quem lhe pedirá conta de seu caminho? Ou quem lhe disse “tu cometeste maldade”?
Lembra-te de que engrandeças sua obra, que os homens contemplam.
Todos os homens a vêem; e o homem a enxerga de longe.
Eis que Deus é grande, e nós o não compreendemos; e o número de seus anos não se pode esquadrinhar.
Porque dissolve as águas em gotas, que derramam a chuva de seu vapor;
A qual as regiões do ar destilam, e gotejam sobre muita gente.
Porventura, também se poderá entender o estender das nuvens? E os estalos de sua tenda?
Eis que estende sobre elas sua luz, e encobre as raízes do mar.
Porque, por estas coisas, ora julga aos povos; e ora lhes dá mantimento em abundância.
Com as mãos, encobre a luz; e faz-lhe proibição, pelo que se mete de permeio.
Com que dá a entender seu pensamento; e tanto com os gados, como também com o que nasce.
Capítulo 37
Disto também treme meu coração, e salta de seu lugar.
Atentamente ouvi vós outros o movimento de sua voz, e o som que sai de sua boca;
Ao qual envia por debaixo de todos os céus, e sua luz até os confins da terra.
Depois disto, brama com grande voz: trovoa com sua alta voz. E ouvida sua voz, não tarda com estas coisas.
Com sua voz trovoa Deus terrivelmente: faz grandes coisas, e nós as não compreendemos.
Porque à neve diz: Está sobre a terra! Como também ao aguaceiro da chuva; e então há aguaceiro de sua grande chuva.
Então sela as mãos de todo homem; para que o conheçam todos os homens, que são sua obra.
E as bestas entram nos covis, e ficam-se em suas cavernas.
Da recâmara sai o pé de vento, e dos ventos dispersantes o frio.
Por seu sopro, Deus dá a geada; e as largas águas se endurecem.
Também com claridade faz cansar as grossas nuvens, e espalha as nuvens de sua luz.
Então ele, segundo seus prudentes conselhos, se torna pelos rodeios, para que eles façam: tudo quanto lhes manda, sobre a superfície do mundo, na terra.
Seja que por vara, ou para sua terra; ou por beneficência, as faça vir.
A isto, Jó, inclina teus ouvidos: põe-te em pé, e considera as maravilhas de Deus.
Porventura sabes tu quando Deus considera nelas, e faz resplandecer a luz de sua nuvem?
Tens tu notícia dos pesos das grossas nuvens, e das maravilhas daquele que é perfeito em ciências?
Ou de como tuas vestes se aquecem, quando desde o Sul se aquieta a terra?
Ou estendeste com ele os céus, que estão firmes como espelho fundido?
Ensina-nos o que lhe diremos; porque nós nada poderemos propor com boa ordem, por causa de nossas trevas.
Ou ser-lhe-ia contando quando eu assim falasse? Dir-lhe-á alguém isso? Pois será devorado.
E agora não se pode olhar para o Sol quando resplandece nos céus, passando e purificando-os o vento;
Quando o tempo, como o ouro resplandecente, vem do norte; porém em Deus, há uma tremenda majestade.
Ao Todo-Poderoso não podemos alcançar: grande é em potência. Porém a ninguém oprime em juízo, e grandeza de justiça.
Por isso o temem os homens; mas ele não respeita nem mesmo a sábios de coração.
Capítulo 38
Depois disto, o Senhor respondeu a Jó desde uma tempestade, e disse:
Quem é este, que escurece o conselho com palavras sem ciência?
Agora cinge-te, como varão, pela cintura; e perguntar-te-ei, e tu me ensina.
Onde estavas tu quando eu fundava a terra? Faze-mo saber, se tens inteligência.
Quem pôs suas medidas? Pois tu o sabes. Ou quem estendeu sobre ela cordel?
Sobre o que estão fundadas suas bases? Ou quem pôs sua pedra de esquina?
Quando as estrelas da alva junta e alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus rejubilavam.
Ou quem encerrou ao mar com portas, quando transbordou e saiu da madre?
Quando pus as nuvens por sua vestidura, e a escuridão por sua faixa.
Quando passei sobre ele meu decreto, e lhe pus portas e ferrolhos.
E disse: Até aqui virás, e não passarás mais a diante; e aqui se porão contra a tuas ondas levantadas.
Ou desde os teus primeiros dias mandaste à madrugada? Ou mostras-te à alva seu lugar?
Para que pegasse os confins da terra, e os ímpios fossem sacudidos dela?
E se transformasse como lodo de selo, e se pusessem como vestidos?
E dos ímpios se desvie sua luz, e o braço altivo se quebrante?
Ou entraste tu até as origens do mar? Ou passeaste no mais profundo do abismo?
Ou revelaram-se-te as portas da morte? Ou viste as portas da sombra da morte?
Ou com teu entendimento chegaste às larguras da terra? Faze-mo saber, se sabes tudo isto.
Onde está o caminho lá para onde mora a luz? E quanto às trevas, onde está seu lugar?
Para que as tragas a seus limites, e que atentes para os caminhos de sua casa.
Bem o sabes tu, porque já então eras nascido! E já teus dias são muitos em número!
Ou entraste tu até os tesouros da neve? E viste os tesouros da saraiva?
Os quais eu retenho até o tempo da angústia, e até o dia da peleja e da guerra?
Onde está o caminho em que se reparte a luz, e o vento oriental se espalha sobre a terra?
Quem repartiu ao aguaceiro os canos, e o caminho aos relâmpagos dos trovões?
Para chover sobre a terra onde não há ninguém; e no deserto, em que não há gente.
Para fartar a terra deserta e assolada, e para fazer crescer aos renovos da erva.
Porventura, a chuva tem pai? Ou quem gera as gotas do orvalho?
De cujo ventre procede o sincelo? E quem gera a geada do céu?
Como debaixo de pedra as águas se escondem, e a superfície do abismo se aparta.
Ou poderás tu ajuntar as delícias do Sete-Estrelo? Ou soltar os atilhos do Órion?
Ou produzir aos Mazarotes, cada um a seu tempo; e guiar a Ursa com seus filhos?
Sabes tu as ordenanças dos céus? Ou podes dispôr do senhorio dos céus sobre a terra?
Ou podes levantar tua voz até as nuvens, para que abundância de águas te cubra?
Ou enviarás aos raios, para que saiam? E te digam: Eis-nos aqui?
Quem pôs a sabedoria nas entranhas, ou quem deu ao entendimento a inteligência?
Quem enumerará as nuvens com sabedoria? E os odres dos céus, quem os abaterá?
Quando o pó se rega para se endurecer, e os torrões se apegam uns aos outros?
Capítulo 39
Porventura, caçarás tu a presa para a leoa? Ou fartarás a fome dos filhos dos leões?
Quando se agacham nos covis, e estão à espreita nas covas?
Quem prepara aos corvos seu alimento, quando seus pintainhos gritam a Deus e andam vagueando por não terem comida?
Sabes tu o tempo em que as cabras monteses parem? Ou consideraste a paridura das cervas?
Ou contarás os meses que de sua gestação cumprem? Ou sabes o tempo de seu parto?
Quando se encurvam, produzem a seus filhos com quebrantamento; e lançam de si suas dores.
Fortalecem-se seus filhos, crescem com o trigo; saem, e nunca mais tornam a elas.
Quem despediu livre ao asno montês? E quem ao asno selvagem soltou das ataduras?
Ao qual dei por casa o ermo, e a terra salgada por suas moradas.
Ri-se do ruído da cidade, e não ouve os muitos gritos do almocreve.
O que descobre nos montes, é seu pasto; e busca toda verdura.
Ou querer-te-á servir o unicórnio, ou pernoitar junto à tua manjedoura?
Ou amarrarás ao unicórnio com sua corda junto aos regos? Ou gradeará após ti os vales?
Ou te confiarás dele, por ser grande sua força? E deixarás a seu cargo teu trabalho?
Ou lhe darás crédito de que te renderá tua semente, e a ajuntará em tua eira?
Vêm de ti as alegres asas dos avestruzes? Certo que têm penas de cegonha, e de águia.
Porém deixa seus ovos na terra, para ficarem quentes no pó.
E esquece-se de que pé algum os pise, e os animais do campo os calquem.
Endurece-se para com seus filhos, como se não fossem os seus; debalde é seu trabalho, porquanto está sem temor.
Porque Deus o privou de sabedoria, e não lhe repartiu entendimento.
A seu tempo, se levanta em alto; e ri-se do cavalo, e do que cavalga sobre ele.
Ou darás tu ao cavalo força? Ou seu pescoço vestirás de estrondo?
Ou fá-lo-ás se levantar como a gafanhoto? Horrível é o fasto do espirro de suas narinas.
Quando assentam o campo, então folga em sua força; e sai ao encontro ao varão armado.
Ri-se do temor, e não se espanta; e não torna atrás por causa da espada.
Contra ele range a aljava; o ferro flamejante da lança, e do dardo.
Sacudindo-se e removendo-se, escarva a terra; e não faz caso do soar da buzina.
Na fúria do soar das buzinas diz: Eia! E de longe cheira a guerra: o estrondo dos príncipes, e o alarido.
Ou voa o gavião por tua inteligência? E estende suas asas para o sul?
Ou a águia se levanta em alto a teu mandado? E põe seu ninho na altura?
Nas penhas mora e pernoita: no cume das penhas, e em lugares seguros.
Desde ali descobre a comida: seus olhos a avistam desde longe.
E seus filhos chupam sangue; e onde há mortos, aí estão.
Respondeu mais o Senhor a Jó, e disse:
Porventura, contender contra o Todo-Poderoso, é ensinar? Quem quer repreender a Deus, responda a estas coisas.
Então Jó respondeu ao Senhor, e disse:
Eis que sou vil e desprezível: que te responderia eu? Minha mão ponho em minha boca.
Já uma vez tenho falado, porém não mais responderei; ou ainda duas vezes, porém não prosseguirei.
Capítulo 40
Então o Senhor respondeu a Jó desde a tempestade, e disse:
Agora, pois, cinge teus lombos como varão: eu te perguntarei a ti, e tu me ensina a mim.
Porventura também aniquilarás tu meu juízo? Ou tu me condenarás a mim, para te justificares a ti?
Ou tens tu braço como o de Deus? Ou podes trovejar com tua voz como ele?
Orna-te, pois, com excelência e alteza; e veste-te de majestade e glória.
Espalha os furores de tua ira; e atenta para todo soberbo, e abate-o.
Atenta para todo soberbo, e deprime-o; e atropela aos ímpios em seu lugar.
Esconde-os a todos juntamente no pó, e ata-lhes seus rostos em oculto.
Então também eu te louvarei, porquanto tua mão direita te haverá livrado.
Vês aqui a Beemote, ao qual fiz juntamente contigo; que come erva como o boi.
Eis que está sua força em seus lombos, e seu poder no umbigo de seu ventre.
Quando quer, seu rabo é como o cedro; e os nervos de suas pernas estão entretecidos.
Seus ossos são como o forte metal; e sua ossada, como barras de ferro.
É uma das obras-primas de Deus; e o que o fez, lhe apegou sua espada.
Porquanto os montes lhe produzem pasto; e todos os demais animais do campo folgam ali.
Deita-se debaixo das brenhas sombrias: no esconderijo das canas, e da lama.
As brenhas sombrias o cobrem, cada qual com sua sombra; e os salgueiros do ribeiro o cercam.
Eis que o rio violenta, e ele não se apressa: é confiado, ainda que o Jordão transborde até a sua boca.
Pode-lo-iam, porventura, caçar à vista de seus olhos? Ou com laços lhe furar as narinas?
Ou pescarás tu ao Leviatã ao anzol? Ou sua língua com a corda que afundas?
Ou lhe farás um junco nas narinas? Ou com um espinho furarás suas queixadas?
Ou te fará muitas suplicações? Ou brandamente te falará?
Ou fará contigo aliança? Ou o aceitarás por perpétuo escravo?
Ou brincarás com ele, como com um passarinho? Ou o atarás para tuas meninas?
Ou os companheiros banquetearão por ele? Ou o repartirão entre os mercadores?
Ou encherás sua pele de ganchos? Ou sua cabeça com arpéus de pescadores?
Põe tua mão nele; mas depois te lembra da peleja, e nunca mais tal intentarás.
Eis que ao tal falhará sua esperança; porventura, também à vista dele será derribado?
Capítulo 41
Ninguém há tão atrevido que a despertá-lo se atreva. Quem, pois, é aquele que ousa se pôr perante meu rosto?
Quem me preveniu a mim, para que eu lho recompense? Pois o que está debaixo de todos os céus, é meu.
Não calarei seus membros; nem a relação de suas forças, nem a graça de sua disposição.
Quem descobriria a superfície de seu vestido? Quem entrará entre suas queixadas dobradas?
Quem abriria as portas de sua face? Pois ao redor de seus dentes há espanto.
Seus fortes escudos são excelentíssimos: cada qual está fechado como com selo apertado.
Um ao outro se ajunta de tão perto, que o vento não pode entrar por entre eles.
Uns aos outros se apegam: juntamente tanto se travam entre si, que não se podem desviar.
Cada qual de seus espirros faz resplandecer a luz; e seus olhos são como as pálpebras da alva.
De sua boca saem tochas acesas, e faíscas de fogo arrebentam dela.
De suas narinas procede fumo, como de uma panela fervente e de uma grande caldeira.
Seu fôlego faria arder os carvões, e de sua boca sai flama.
Em seu pescoço repousa a fortaleza; e perante ele, até o medo salta de prazer.
Os pedaços de sua carne estão apegados entre si: cada qual está firme nele, e nenhum nele se move.
Seu coração é firme como uma pedra, e firme como parte da mó debaixo.
Levantando-se ele, os valentes tremem; e por seus abalos, se purificam.
Se alguém lhe tocar com a espada, essa não poderá subsistir; como tampouco lança, dardo, nem couraça.
Ao ferro estima por palha, e ao bronze por pau podre.
A seta o não fará fugir, e as pedras das fundas se lhe tornam em arestas.
Às pedras atiradas, estima como arestas; e ri-se do brandir da lança.
Debaixo de si, tem conchas agudas; e estende-se sobre coisas pontiagudas na lama.
Às profundezas faz ferver, como a uma panela; e põe ao mar como a cozinha de boticário.
Após si tanto alumia o caminho, que parece que o abismo se torna em brancura de cãs.
Na terra não há coisa que se lhe possa comparar, pois foi feito para estar sem pavor.
Atenta por toda altura, e é rei sobre todos os filhos de animais altivos.
Capítulo 42
Então respondeu Jó ao Senhor, e disse:
Bem sei eu que tudo podes; e nenhum de teus pensamentos pode ser impedido.
Quem é aquele, dizes tu, que encobre o conselho sem ciência? Assim que relatei o que não entendia: coisas que para mim eram maravilhosíssimas, e eu mesmo as não entendia.
Escuta-me pois, disse eu, e eu falarei: eu te perguntarei, e tu me ensina a mim.
Com o ouvir das orelhas te ouvi; e agora, meus próprios olhos te vêem.
Pelo que abomino o que disse, e arrependo-me: em pó, e cinza.
Sucedeu pois que, acabando o Senhor de falar a Jó aquelas palavras, o Senhor disse a Elifaz o temanita: Minha ira se acendeu contra ti, e contra teus dois amigos, porque não falastes de mim bem e direitamente, como meu servo Jó.
Agora, pois, tomai-vos sete bezerros e sete carneiros, e ide-vos a meu servo Jó; e oferecei holocaustos por vós outros, e meu servo Jó ore por vós. Porque deveras atentarei para seu rosto, para que vos não trate conforme a vossa louquice; porque de mim não falastes bem e direitamente, como meu servo Jó.
Então foram Elifaz, o temanita, e Bildade, o suíta, e Zofar, o naamatita, e fizeram como o Senhor lhes dissera; e o Senhor atentou para o rosto de Jó.
E o Senhor virou o cativeiro de Jó, orando este por seus amigos. E o Senhor acrescentou a Jó outro tanto em dobro a tudo quanto tinha.
Então vieram a ele todos seus irmãos, e todas suas irmãs, e todos quantos dantes o conheceram, e comeram com ele pão em sua casa; e condoeram-se dele, e consolaram-no acerca de todo o mal que o Senhor trouxera sobre ele. E cada qual lhe dera uma peça de dinheiro, e cada um também uma joia de ouro.
E assim abençoou o Senhor ao último estado de Jó mais que o primeiro; porque teve catorze mil ovelhas, e seis mil camelos, e mil juntas de bois, e mil asnas.
Também teve sete filhos, e três filhas.
E chamou o nome de uma Jemima, e o nome da outra Quésia; e o nome da terceira, Quéren-Hapuque.
E não se acharam mulheres tão formosas como as filhas de Jó em toda a terra; e seu pai lhes deu herança entre seus irmãos.
E depois disto, viveu Jó centro e quarenta anos; e viu a seus filhos, e aos filhos de seus filhos, até em quatro gerações.